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domingo, 29 de junho de 2014

Terceira

Minha querida,

Parece que o odor dos cavalos que atacaram o nosso flanco ainda está impregnado nas minhas roupas. Avançava, novamente e para meu desgosto, contra o inimigo quando os gritos dos meus camaradas tiraram os meus olhos do objectivo e me fizeram ver a chacina que decorria do meu lado direito.
Tantas vezes já montei, tanto gostei de alguns cavalos e, naquele momento, todos eles me pareceram ser das mais terríveis bestas que existem nesta nossa Terra. Fui atirado de um lado para o outro enquanto tentava fugir. As balas pararam de voar até nós, mas a cavalaria que nos atacava bramia as suas espadas e disparava os seus revólveres. Não sei de onde apareceram, não estavam lá antes, não estavam lá durante! Sei que nos mataram e que no meio de todo aquele horror eu e outros poucos conseguimos fugir para o meio das árvores que nos protegiam a retaguarda. Se me empoleirar em cima delas e me arriscar a escorregar no gelo que lhes povoa os ramos, ainda consigo ver o sangue espalhado pela neve do campo de batalha.
Rezaste por mim. Tenho a certeza que sim e digo-te que, se há quem ache que as vontades moldam o mundo, a tua pode salvar vidas.
Como estás? O que tens feito? O que tens dito? Com que tens sonhado?
Dói-me tanto não poder estar contigo, agonia-me realmente. Mas, de qualquer modo, acho que a dor me ajuda, acho que é tanta que me faz querer sobreviver para aliviar e já me conformei que este é o meu inferno e que se quero chegar ao céu que é estar contigo, tenho de fazer por isso e lutar.
Não sei quando esta carta vai chegar até ti. O mensageiro que leva a correspondência nunca mais apareceu, talvez ache que estamos tão moribundos que não escrevemos ou tenha medo de nos ver, cento e vinte apenas, e à desolação que por aqui vai. Apenas o mensageiro militar cá vem e as ordens que traz são sempre as mesmas. "Avancem e defendam a vossa casa até que o último alemão não tenha ar nos pulmões" mandam os generais...pobres de nós que estamos quase sem pólvora e estamos tão longe da civilização. 
Já só vejo monte e, no meio da árvores, tu, no teu vestido azul, a fugir de mim e a rir. Sinto-me tentado a perseguir-te e encontrar a felicidade, mas quem me diz que não morro e nunca mais te vejo? Não, não arrisco nunca mais te ter.

Continua a rezar que eu não sei que faça.

Do teu,
André.


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